Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens com o rótulo Luís Vaz de Camões
Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; É um andar solitário entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É um cuidar que se ganha em se perder. É querer estar preso por vontade É servir a quem vence o vencedor, É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade; Se tão contrário a si é o mesmo amor? Luís de Camões
Amor mil vezes já me tem mostrado Amor mil vezes já me tem mostrado o ser-me vida o mesmo fogo ardente, como quem queima um dedo e facilmente no mesmo fogo o torna a ver curado. Meu mal, tristeza, dor, pena e cuidado, o bem, a vida alegre, ser contente naquela vista pura e excelente pôs, por essa maneira, o tempo e fado. Que veja mil mudanças num momento, que cresça nelas todas sempre a dor não sei, que os meus castelos são de vento! O tempo, que vos mostra ser senhor, por mais que contra mi se mostre isento, há-de tornar por tempo tudo amor. Luís Vaz de Camões
Canção X Vinde cá, meu tão certo secretário dos queixumes que sempre ando fazendo, papel, com que a pena desafogo! As sem-razões digamos que, vivendo, me faz o inexorável e contrário Destino, surdo a lágrimas e a rogo. Deitemos água pouca em muito fogo; acenda-se com gritos um tormento que a todas as memórias seja estranho. Digamos mal tamanho a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento, a quem já muitas vezes o contei, tanto debalde como o conto agora; mas, já que para errores fui nascido, vir este a ser um deles não duvido. Que, pois já de acertar estou tão fora, não me culpem também, se nisto errei. Sequer este refúgio só terei: falar e errar sem culpa, livremente. Triste quem de tão pouco está contente! Já me desenganei que de queixar-me não se alcança remédio; mas quem pena, forçado lhe é gritar se a dor é grande. Gritarei; mas é débil e pequena a voz para poder desabafar-me, porque nem com gritar a dor se abrande. Quem me dará sequer que fora mande lágrimas e suspiros infinitos ...
Canção IX Manda-me Amor que cante docemente o que ele já em minh' alma tem impresso com pressuposto de desabafar-me; e por que com meu mal seja contente, diz que ser de tão lindos olhos preso, contá-lo bastaria a contentar-me. Este excelente modo de enganar-me tomara eu só de Amor por interesse, se não se arrependesse, coa pena o engenho escurecendo. Porém a mais me atrevo, em virtude do gesto de que escrevo; e se é mais o que canto que o que entendo, invoco o lindo aspeito, que pode mais que Amor em meu defeito. Sem conhecer Amor viver soía, seu arco e seus enganos desprezando, quando vivendo deles me mantinha. O Amor enganoso, que fingia mil vontades alheias enganando, me fazia zombar de quem o tinha. No Touro entrava Febo, e Progne vinha; o corno de Aqueloo Flora entornava, quando o Amor soltava os fios de ouro, as tranças encrespadas ao doce vento esquivas, dos olhos rutilando chamas vivas, e as rosas antre a neve semeadas, co riso tão galante que um peito desfizera de diamante...
Canção VIII Com força desusada aquenta o fogo eterno üa ilha lá nas partes do Oriente, de estranhos habitada, aonde o duro Inverno os campos reverdece alegremente. A lusitana gente, por armas sanguinosas, tem dela o senhorio. Cercada está dum rio de marítimas águas saudosas; das ervas que aqui nascem, os gados juntamente e os olhos pascem. Aqui minha ventura quis que üa grã parte da vida, que não tinha, se passasse, para que a sepultura nas mãos do fero Marte de sangue e de lembranças matizasse. Se Amor determinasse que, a troco desta vida, de mim qualquer memória ficasse, como história que de uns fermosos olhos fosse lida, a vida e alegria por tão doce memória trocaria. Mas este fingimento, por minha dura sorte, com falsas esperanças me convida. Não cuide o pensamento que pode achar na morte o que não pôde achar tão longa vida. Está já tão perdida a minha confiança que, de desesperado em ver meu triste estado, também da morte perco a esperança. Mas oh! que, se algum dia desesperar pud...
Canção VII Junto de um seco, fero e estéril monte, inútil e despido, calvo, informe, da natureza em tudo aborrecido, onde nem ave voa, ou fera dorme, nem rio claro corre, ou ferve fonte, nem verde ramo faz doce ruído; cujo nome, do vulgo introduzido, é Félix, por antífrase infelice; o qual a Natureza situou junto a parte onde um braço de mar alto reparte Abássia da arábica aspereza, onde fundada já foi Berenice, ficando a parte donde o Sol que nele ferve se lhe esconde; nele aparece o Cabo com que a costa africana, que vem do Austro correndo, limite faz, Arómata chamado (Arómata outro tempo; que, volvendo os céus, a ruda língua mal composta dos próprios outro nome lhe tem dado). Aqui, no mar que quer apressurado entrar pela garganta deste braço, me trouxe um tempo e teve minha fera ventura. Aqui, nesta remota, áspera e dura parte do mundo, quis que a vida breve também de si deixasse um breve espaço, por que ficasse a vida pelo mundo em pedaços repartida. Aqui me achei gastando uns tris...
Canção VI Vão as serenas águas do Mondego descendo mansamente que até o mar não param; por onde minhas mágoas, pouco a pouco crecendo, para nunca acabar se começaram. Ali se ajuntaram neste lugar ameno, aonde agora mouro, testa de neve e ouro, riso brando, suave, olhar sereno, um gesto delicado, que sempre n' alma me estará pintado. Nesta florida terra, leda, fresca e serena, ledo e contente para mim vivia, em paz com minha guerra, contente com a pena que de tão belos olhos procedia. Um dia noutro dia o esperar me enganava; longo tempo passei, com a vida folguei, só porque em bem tamanho me empregava. Mas que me presta já, que tão fermosos olhos não os há? Oh, quem me ali dissera que de amor tão profundo o fim pudesse ver inda algüa hora! Oh, quem cuidar pudera que houvesse aí no mundo apartar-me eu de vós, minha Senhora, para que desde agora perdesse a esperança, e o vão pensamento, desfeito em um momento, sem me poder ficar mais que a lembrança, que sempre estará firme até o derr...
Canção V Já a roxa manhã clara do Oriente as portas vem abrindo, dos montes descobrindo a negra escuridão da luz avara. O Sol, que nunca pára, de sua alegre vista saudoso, trás ela, pressuroso, nos cavalos cansados do trabalho, que respiram nas ervas fresco orvalho, se estende, claro, alegre e luminoso. Os pássaros, voando de raminho em raminho, modulando com üa suave e doce melodia, o claro dia estão manifestando. A manhã bela e amena seu rosto descobrindo, a espessura se cobre de verdura branda, suave, angélica, serena. Ó deleitosa pena, ó efeito de Amor tão preeminente que permite e consente que, onde quer que me ache e onde esteja, o seráfico gesto sempre veja, por quem de viver triste sou contente! Mas tu, Aurora pura, de tanto bem dá graças à ventura, pois as foi pôr em ti tão diferentes, que representes tanta fermosura. A luz suave e leda a meus olhos me mostra por quem mouro, e os cabelos de ouro não igual' aos que vi, mas arremeda: esta é a luz que arreda a negra escuridão...
Canção IV A instabilidade da Fortuna, os enganos suaves de Amor cego, – suaves, se duraram longamente –, direi, por dar a vida algum sossego; que pois a grave pena me importuna, importune meu canto a toda a gente. E se o passado bem co mal presente me endurece a voz no peito frio, o grande desvario dará de minha pena sinal certo; que um erro, em tantos erros, e concerto. E pois nesta verdade me confio – se verdade se achar no mal que digo –, saiba o mundo de Amor o desconcerto, que já co a Razão se fez amigo, só por não deixar culpa sem castigo. Já Amor fez leis, sem ter comigo algüa; já se tornou, de cego, arrazoado, só por usar comigo sem-razões. E se em algüa cousa o tenho errado, com siso grande dor não vi nenhüa, nem ele deu sem erros afeições. Mas, por usar de suas isenções, buscou fingidas causas por matar-me; que, para derrubar-me no abismo infernal de meu tormento, não foi soberbo nunca o pensamento, nem pretende mais alto alevantar-me daquilo que ele quis; e se ele ordena que...
Canção III Tomei a triste pena já de desesperado de vos lembrar as muitas que padeço, com ver que me condena a ficar eu culpado o mal que me tratais e o que mereço. Confesso que conheço que, em parte, eu causei o mal em que me vejo, pois sempre meu desejo tão comprido, em vós cumprir deixei; mas não tive suspeita que seguísseis tenção tão imperfeita. Se em vosso esquecimento tão envolto estou como os sinais demonstram, que mostrais; vivo neste tormento, lembranças mais não dou que a que de razão tomar queirais. Olhai que me tratais assi de dia em dia com vossas esquivanças; e as vossas esperanças, de que vamente eu me enriquecia, renovam a memória; pois com tê-la de vós só tenho glória. E se isto conhecêsseis que e verdade pura, como ouro de Arábia reluzente, inda que não quisésseis, a condição tão dura mudáreis noutra muito diferente. E eu, como inocente que estou neste caço, isto em mãos pusera de quem sentença dera – que ficasse o direito justo e raso –, se não arreceara que a vós p...
Canção II Se este meu pensamento, como é, doce e suave, de alma pudesse vir gritando fora, mostrando seu tormento cruel, áspero e grave, diante de vós só, minha Senhora, pudera ser que agora o vosso peito duro tornara manso e brando. E eu que sempre ando pássaro solitário, humilde, escuro, tornado um cisne puro, brando e sonoro pelo ar voando, com canto manifesto, pintara meu tormento e vosso gesto. Pintara os olhos belos que trazem nas mininas o Minino que os seus neles cegou; e os dourados cabelos em tranças de ouro finas a quem o Sol seus raios abaixou; a testa que ordenou Natura tão fermosa; o bem proporcionado nariz, lindo, afilado, que a cada parte tem a fresca rosa; a boca graciosa – que querê-la louvar é escusado –, enfim, é um tesouro: os dentes, perlas; as palavras, ouro. Vira-se claramente, ó Dama delicada, que em vós se esmerou a Natureza; e eu, de gente em gente, trouxera trasladada em meu tormento vossa gentileza. Somente a aspereza de vossa condição, Senhora, não dissera...
Canção I Fermosa e gentil Dama, quando vejo a testa de ouro e neve, o lindo aspeito, a boca graciosa, o riso honesto, o marmóreo colo e branco peito, de meu não quero mais que meu desejo, nem mais de vos que ver tão lindo gesto. Ali me manifesto por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo nas lágrimas que choro; e de mim, que vos amo, em ver que soube amar-vos, me namoro; e fico por mim só perdido, de arte que hei ciúmes de mim por vossa parte. Se porventura vivo descontente por fraqueza de esprito, padecendo a doce pena que entender não sei, fujo de mim e acolho-me, correndo, à vossa vista; e fico tão contente que zombo dos tormentos que passei. De quem me queixarei se vós me dais a vida deste jeito nos males que padeço, senão de meu sujeito, que não cabe com bem de tanto preço? Mas ainda isso de mim cuidar não posso, de estar muito soberbo com ser vosso. Se, por algum acerto, Amor vos erra, por parte do desejo cometendo algum nefando e torpe desatino; se ainda mais que ver, enfim, pr...